“O BEIJO DE ÉVA KISS” POR JCF
“O BEIJO DE ÉVA KISS” POR JCF
O BEIJO DE ÉVA KISS
José Falcão Tavares (n.1953, Abrantes) estreia-se na ficção com este «O beijo de Éva
Kiss» (Editora Gato-Bravo).. O ponto de partida é o jornal Hirlap (Budapeste) de 4-9-
1933 referindo a morte do Dr. Sándor Ferenczi em 22-5-1933 e o inquérito policial a
esta morte, conduzida pelo inspector Lajos Kovacs. Mas embora organizado em 23
blocos narrativos (o nº 17 dá o título ao livro) não deixa de evocar a Bíblia («guarda-me
como a menina dos olhos») e uma lenda antiga: «um homem colocava areia nos olhos
dos meninos para eles adormecerem». Na página 23 lê-se «Gizella era Áustria e
Hungria mesmo que um tiro as tenha separado para sempre». Organizado como uma
balada, misto de canção e reflexão, espécie de poema em prosa, que conta e
questiona uma realidade (a Psicanálise) enquadrada noutra realidade (a cidade de
Budapeste), este livro conjuga o factor da história humana com o processo mais amplo
da História. Vejamos a página 202 «O enredo deste livro começou a rolar quando o pai
mandou o Tó estudar em vez de ele ficar a tratar do moinho do pai». Há sempre um
contraponto para o ponto: «Na América as festas de Verão eram frequentes, em
Budapeste a Guerra ceifou famílias, trouxe miséria, muitos não tinham vontade de
sorrir. Não havia festas em Budapeste». Na página 40 lê-se «Budapeste era a cidade do
Mundo que mais crescia depois de Chicago» ou «Era um gira-discos vindo da América
para outro dono que entretanto fugira apressado de Budapeste com a derrocada da
Bolsa em 1929». O beijo pode ser lido como uma ligação entre a América e a Europa;
basta ler a página 212: «Nunca soube dizer quanto tempo durou aquele beijo» A
Psicanálise pode ter muitas definições: «Quando uma porta ranger o passado que já
passou, voltará. Por isso criámos a Psicanálise»; havia doentes enviados de Berlim,
Haia, Nova Iorque ou Paris». Estamos entre o pó («Vimos do pó e voltamos ao pó.
Nada mais») e o sonho «uma Pátria onde houvesse pão para todos, um tecto para
dormir, onde pudesse caminhar de cabeça levantada e olhar o sol». O inconsciente
pode ser «a memória do esquecimento» porque é uma das formas de vida
(«consciente, subconsciente e inconsciente») ou explicando melhor: «o dinheiro é o
nosso consciente, o subconsciente é a resposta guardada para responder aos outros, o
insconsciente é o que está no fundo, o amor, o ódio, o medo, a inveja». Quando fez 70
anos Freud deu uma entrevista a George Sylvester Vierek: «O psicanalista é como o
bode expiatório dos judeus. As pessoas colocam nele a culpa dos seus pecados».
Fiquemos por aqui embora o romance mereça mais. Este é um livro fascinante que se
pode ler como um policial ou como uma lição de História. Quem leu, leu; quem não leu
não sabe o que perdeu. José do Carmo Francisco, Correio do Ribatejo, 2025
